sexta-feira, 15 de maio de 2009

A LEI TEM QUE PEGAR

O impacto produzido pela chamada Lei Seca, aprovada em junho de 2008, pouco a pouco se arrefeceu. O tema já não é mais o item dominante na pauta de discussões, em ambientes festivos ou não. Tal mudança certamente não se deve à conscientização da sociedade quanto aos riscos envolvidos na dobradinha álcool e direção. O aprendizado raramente se dá pela simples criação de uma lei. A impunidade e as dificuldades para atender os rigores da lei comprometem os resultados e a sociedade volta rapidamente a assumir antigos hábitos. Bastassem as leis, viveríamos em um país sem tantas dificuldades, face à amplitude de nosso ordenamento jurídico. As leis estabelecem desejáveis modelos de conduta.
O número de pessoas que admitem ingerir bebidas alcoólicas abusivamente e assumem a direção de veículos retornou ao patamar anterior ao advento da lei, em torno de 2%. Isto sem contar aqueles que omitem a informação ou imaginam não correr qualquer risco após a ingestão de quantidades menores de álcool. Uma simples dose de destilado pode comprometer os reflexos, embora o motorista não perceba seus efeitos.
O apelo do ministro Temporão, “A lei tem que pegar... O país precisa desesperadamente que essa lei funcione”, é contundente. Realmente, a sociedade brasileira necessita desta lei, pois milhares de mortes são contabilizadas anualmente, em decorrência de acidentes de trânsito onde o álcool, na maioria das vezes, se encontra envolvido. O drama é ainda maior quando contabilizamos sobreviventes, com seqüelas graves e irreversíveis. Não se pode, contudo, esperar que a conscientização se dê de forma automática. Campanhas continuadas devem ser elaboradas. Demandam alguns anos para que a obediência ocorra naturalmente. Além disso, a fiscalização necessita ser contínua e eficaz para que a sociedade não entre na acomodação gerada pela impunidade.
Enquanto não compreendermos que esta lei foi criada com o intuito de proteger e não apenas punir os cidadãos, continuaremos a vivenciar acidentes no trânsito com progressiva magnitude e complexidade.

CELINA CÔRTE PINHEIRO
PUBLICADO NO DIÁRIO DO NORDESTE EM 05/05/2009

CELINO

CELINO

Celina Côrte Pinheiro

Encontrava-me ainda ligada com unhas e sem dentes a um invólucro aquecido, espiando através da minha primeira janela do mundo e já podia divisar a discussão que se travava a meu respeito. Nasci franzina, com mãos magras e dedos longos, comparados imediatamente aos pés de uma galinha. Mau começo, sem contar aquela respiração rápida, arquejante, acompanhada de um gemido, Apgar-mente nada recomendável.
À minha presença, a discussão se acirrou. Eu deveria receber um nome marcante já que, com aquele aspecto tão depauperado, muito deixava a desejar. Além disso, meu nome deveria obrigatoriamente se iniciar com a letra C, não porque isso tivesse algo a ver com a minha cara um tanto quanto estranha. Na verdade, eu iria compor mais um Cê na família.
A “enfremeira” (mistura de freira com enfermeira) tentando ajudar na definição de meu nome, perguntou à minha mãe:
- Que santo ela trouxe?
Minha mãe, ainda surpresa comigo, um verdadeiro projeto de gente, não entendeu a pergunta e devolveu:
- Nenhum!!
A freira só conseguiu esboçar um “que pena!”, benzeu-se e saiu. Para piorar ainda mais minha condição feminina, nascera também herege! Nenhum santo para me acompanhar... nem à distância! Um caos!
Seguiram-se mil e uma sugestões relativas ao meu futuro nome: Cristina, Carolina, Catarina, Creolina, Crisantina, Cleide, Clélia, Carmem e finalmente Celina, em homenagem a velho amigo de meu tio, um tal de Celino. Este último nome foi rejeitado por oito votos contra um e minha mãe, tomando a palavra, decretou que eu seria Carmem Sílvia. Respirei aliviada, pois meu destino poderia ter sido pior.
Meu pai saiu para o cartório, empunhando o nome sugerido, cuidadosamente anotado em um papelzinho. O problema foi ele haver cedido ao impulso bastante compreensível de arriscar a sorte no jogo do bicho, com o número do quarto onde minha mãe se encontrava. Caso o resultado fosse favorável, a grana ajudaria a reduzir as despesas hospitalares geradas com a minha chegada. Carmem Sílvia virou aposta, por trás de um papelucho com uma centena, do primeiro ao quinto. Meu pai, no cartório, por mais que tentasse, não conseguiu se recordar do nome proposto para mim, cuidadosamente selecionado dentre aquela enxurrada antroponímica. Sem titubear, registrou o primeiro que lhe veio à mente: Celina. Minha mãe, desde o princípio rejeitou tal escolha, passando a me classificar como Celi.
Graças, porém, ao meu verdadeiro nome, cresci às voltas com o assédio do homenageado Celino, um senhor já apanhado nos anos, gorducho e de bochechas rosadas que prometia se casar comigo quando eu crescesse. Apesar de nossa diferença de idade em quase sessenta anos, eu acreditava e me apavorava na inocência dos meus cinco ou seis anos. Como eu o detestava! Felizmente, sua presença era eventual em minha vida.
Cresci, perdi um pouco daquele ar desnutrido e me assumi como Celina, com prazer e orgulho. O velho Celino já desaparecera e eu não tinha mais por que temer. Pelo menos é o que imaginava até participar de uma coletânea onde eu era a única presença feminina, junto a um exército masculino. Por conta de uma falha gráfica, nomearam-me Celino, em uma desaforada reminiscência ao meu passado conflituoso.
E agora lhes pergunto: - Será que a alma do velho Celino continua me atentando? Que Deus o tenha!