sexta-feira, 15 de maio de 2009

CELINO

CELINO

Celina Côrte Pinheiro

Encontrava-me ainda ligada com unhas e sem dentes a um invólucro aquecido, espiando através da minha primeira janela do mundo e já podia divisar a discussão que se travava a meu respeito. Nasci franzina, com mãos magras e dedos longos, comparados imediatamente aos pés de uma galinha. Mau começo, sem contar aquela respiração rápida, arquejante, acompanhada de um gemido, Apgar-mente nada recomendável.
À minha presença, a discussão se acirrou. Eu deveria receber um nome marcante já que, com aquele aspecto tão depauperado, muito deixava a desejar. Além disso, meu nome deveria obrigatoriamente se iniciar com a letra C, não porque isso tivesse algo a ver com a minha cara um tanto quanto estranha. Na verdade, eu iria compor mais um Cê na família.
A “enfremeira” (mistura de freira com enfermeira) tentando ajudar na definição de meu nome, perguntou à minha mãe:
- Que santo ela trouxe?
Minha mãe, ainda surpresa comigo, um verdadeiro projeto de gente, não entendeu a pergunta e devolveu:
- Nenhum!!
A freira só conseguiu esboçar um “que pena!”, benzeu-se e saiu. Para piorar ainda mais minha condição feminina, nascera também herege! Nenhum santo para me acompanhar... nem à distância! Um caos!
Seguiram-se mil e uma sugestões relativas ao meu futuro nome: Cristina, Carolina, Catarina, Creolina, Crisantina, Cleide, Clélia, Carmem e finalmente Celina, em homenagem a velho amigo de meu tio, um tal de Celino. Este último nome foi rejeitado por oito votos contra um e minha mãe, tomando a palavra, decretou que eu seria Carmem Sílvia. Respirei aliviada, pois meu destino poderia ter sido pior.
Meu pai saiu para o cartório, empunhando o nome sugerido, cuidadosamente anotado em um papelzinho. O problema foi ele haver cedido ao impulso bastante compreensível de arriscar a sorte no jogo do bicho, com o número do quarto onde minha mãe se encontrava. Caso o resultado fosse favorável, a grana ajudaria a reduzir as despesas hospitalares geradas com a minha chegada. Carmem Sílvia virou aposta, por trás de um papelucho com uma centena, do primeiro ao quinto. Meu pai, no cartório, por mais que tentasse, não conseguiu se recordar do nome proposto para mim, cuidadosamente selecionado dentre aquela enxurrada antroponímica. Sem titubear, registrou o primeiro que lhe veio à mente: Celina. Minha mãe, desde o princípio rejeitou tal escolha, passando a me classificar como Celi.
Graças, porém, ao meu verdadeiro nome, cresci às voltas com o assédio do homenageado Celino, um senhor já apanhado nos anos, gorducho e de bochechas rosadas que prometia se casar comigo quando eu crescesse. Apesar de nossa diferença de idade em quase sessenta anos, eu acreditava e me apavorava na inocência dos meus cinco ou seis anos. Como eu o detestava! Felizmente, sua presença era eventual em minha vida.
Cresci, perdi um pouco daquele ar desnutrido e me assumi como Celina, com prazer e orgulho. O velho Celino já desaparecera e eu não tinha mais por que temer. Pelo menos é o que imaginava até participar de uma coletânea onde eu era a única presença feminina, junto a um exército masculino. Por conta de uma falha gráfica, nomearam-me Celino, em uma desaforada reminiscência ao meu passado conflituoso.
E agora lhes pergunto: - Será que a alma do velho Celino continua me atentando? Que Deus o tenha!

Um comentário:

  1. Celina, querida nova amiga e amiga nova,
    você não existe.Gostoso demais ler o que você escreve.
    Bjs
    Fátima Azevêdo

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